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Novo Código Civil: principais alterações e próximos passos

Equipe MJAB 27.05.24

No último mês, o Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), recebeu o anteprojeto elaborado pela Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil (CJCODCIVIL). A Comissão foi presidida pelo Ministro Luis Felipe Salomão, do STJ, e relatada pelos professores Flavio Tartuce e Rosa Maria de Andrade Nery.

A proposta de atualização é resultado de uma colaboração entre o Parlamento, autoridades judiciárias e juristas renomados, considerando a evolução da sociedade nos últimos 20 anos. Além de modernizar o texto, esse processo representou um marco na história do país, com a participação inédita de autoras mulheres na comissão.

O Código Civil é frequentemente chamado de “a constituição da população”, sendo a norma que orienta as ações cotidianas. A presença de uma pluralidade social, de pensamentos e opiniões na comissão permite ajustar o texto às mudanças das últimas duas décadas, especialmente no âmbito jurisprudencial e doutrinário.

Embora o anteprojeto traga avanços significativos, percebe-se que a Comissão não realizou uma revisão integral do Código. Abaixo, colaciona-se um compilado das principais atualizações identificadas:

  1. Parte Geral

  • Personalidade Internacional: O texto reconhece a personalidade internacional a todas as pessoas naturais em território nacional, como forma de trazer maior protagonismo aos tratados internacionais incorporados pelo Brasil.
  • Incapacidade Absoluta: Retoma a redação anteriormente vigente para determinar que são absolutamente incapazes aqueles que não podem expressar sua vontade por qualquer meio, temporária ou permanentemente, em consonância com o previsto no Estatuto da Pessoa com Deficiência.
  • Autonomia da Vontade: Garante o direito de afirmação de vontade sobre o próprio corpo, tanto em vida quanto após a morte, e protege o nome da pessoa e os direitos de personalidade no ambiente digital.
  • Proteção Jurídica dos Animais: Reconhece os animais como seres sencientes e inclui a afetividade entre humanos e animais como um direito de personalidade humana. Também regula questões relacionadas à guarda e despesas de animais de estimação.
  • Invalidade do Negócio Jurídico: Propõe que até mesmo a simulação inocente seja invalidante e prevê a possibilidade excepcional de manutenção dos efeitos de negócios jurídicos nulos.
  • Prescrição e Decadência: Estabelece o princípio da actio nata subjetiva para responsabilidade civil extracontratual e objetiva para contratual e define um prazo máximo de segurança (10 anos) para limitar o tempo de ajuizamento de uma ação. Alterou o prazo prescricional geral de 10 anos para 5 anos, em conformidade com o Código de Defesa do Consumidor, nas hipóteses em que a lei não tenha fixado prazo menor.
  1. Direito das Obrigações

A atualização deste Livro foi fundamentada em dois pilares fundamentais: (i) respeito aos princípios da eticidade, sociabilidade e operabilidade, e; (ii) atualização somente do necessário.

Para isso, o trabalho da Comissão foi dividido em três pilares: (i) correção de artigos com a redação confusa; (ii) conferir operabilidade ao Código, quanto aos artigos que geravam interpretação dúbia pela doutrina; e (iii) criação de dispositivos que não existiam (ex.: Cessão da Posição Contratual, seguindo os diplomas italiano e português).

Para além das alterações formais, incluíram-se duas disposições que merecem atenção:

  • Cláusula Penal: Limita a intervenção judicial sobre a cláusula penal em contratos paritários e simétricos, exigindo que as partes ajustem as regras para prever as causas de sua redução, seguindo as previsões da Lei de Liberdade Econômica.
  • Juros: Estabelece juros moratórios de 1% ao mês quando não forem convencionados.
  1. Contratos

O objetivo da Comissão, com relação a este Título, foi simplificar os procedimentos e reduzir a burocracia para facilitar a circulação de contratos e a concessão de crédito no país.

O texto apresentado respeita os regimes jurídicos de leis especiais para determinadas relações contratuais, especialmente contratos empresariais, priorizando um regime mais livre e menos intervencionista.

Entre as inovações, destacam-se as seguintes:

  • Smart Contracts: Regula os contratos inteligentes, que, embora já existam e possam ser celebrados e executados, é essencial que a máquina esteja sujeita à vontade humana, o que requer regulamentação específica.
  • Fiança: Permite ao fiador agir como substituto processual e suprir a morosidade do credor na execução dos bens que ainda subsistem em nome do devedor, além de obrigar o credor a manter o fiador atualizado sobre o inadimplemento do devedor.
  1. Responsabilidade Civil

O presente Título encontra sua motivação atualização em três justificativas principais: (i) do ponto de vista estilístico e linguístico, é necessário ter um Código simples e compreensível para todos; (ii) é imperioso resgatar o papel de coordenação do Código Civil no diálogo com outros sistemas de direito privado, como o Código de Defesa do Consumidor e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD); e (iii) deve haver um conjunto de normas in abstrato que sinalize as “regras do jogo” com parâmetros firmes e claros de julgamento.

Essa reforma está estruturada em quatro eixos principais:

  • Organização dos Nexos de Imputação da Responsabilidade Civil: Busca-se conceder racionalidade e coerência aos fatores de atribuição da obrigação de indenizar, abordando ilícito, risco da atividade e responsabilidade pelo fato de terceiro ou da coisa.
  • Organização do Sistema de Danos: Propõe-se o aperfeiçoamento do tratamento do dano patrimonial, visando dar mais autonomia aos demandantes para escolher entre a reparação de danos patrimoniais, a restituição de valores indevidos ou o valor que seria pago pela obtenção do consentimento.
  • Adequação da Responsabilidade Civil aos Ordenamentos Mais Avançados: Visa-se compreender a responsabilidade civil como um sistema de gestão de risco e de restauração de um equilíbrio injustamente rompido. Além da contenção de danos, há a necessidade de conter comportamentos antijurídicos por meio da introdução de funções preventivas e pedagógicas.
  1. Direito da Empresa

A reforma do Livro da Empresa introduziu modificações pontuais na disciplina do direito empresarial, com o escopo de impulsionar o fluxo de negócios no País, a atração de investimentos, fomentando o empreendedorismo e a concorrência, essenciais à geração de riquezas à sociedade brasileira. Como exemplo das modernizações propostas, têm-se:

  • Contratos Empresariais: Define os seguintes parâmetros de interpretação dos contratos empresariais: (i) nas relações entre empresas assimétricas, deve prevalecer o tratamento específico conferido ao tipo contratual; (ii) a concreção da cláusula geral de boa-fé objetiva, em avenças celebradas entre empresas, mede-se pela expectativa comum que uma empresa atuante naquele mercado teria; (iii) em caso de lacuna, os usos e costumes do mercado incidem sobre o contrato empresarial; (iv) fixa, como regra geral, a licitude das cláusulas de não competição, desde que limitadas no espaço e no tempo; e (v) positiva a possibilidade de celebração de contratos empresariais atípicos.
  • Sociedade Estrangeira: Altera a previsão que permite à sociedade estrangeira ser acionista de sociedade brasileira independentemente de prévia autorização. A nova redação exige autorização do Poder Executivo para funcionamento no país e demanda que a sociedade estrangeira tenha sede e representante em território nacional, além de provar que não é receptora de subvenção de recursos de governo estrangeiro.
  1. Direito das Coisas

  • Direito Possessório sobre Bens Imateriais: Prevê a expressa possibilidade de direito possessório sobre bens imateriais, como, por exemplo, a herança digital, marcas e patentes.
  • Propriedade Fiduciária: Inclui a propriedade fiduciária no rol de direitos reais, tratando-a como garantia real e de gestão.
  • Usucapião: Fomenta a “extrajudicialização” como método de regularização dos bens imóveis, prevendo a possibilidade de a usucapião ser requerida em cartório de registro de imóveis, sem participação do Poder Judiciário.
  • Vida Condominial Harmônica: Proíbe o uso de unidades residenciais para fins de hospedagem atípica, como o Airbnb, salvo autorização expressa da convenção ou assembleia.
  1. Direito Digital

A Comissão introduziu o Direito Civil Digital como um livro autônomo no anteprojeto, composto por 10 capítulos que abordam desde os conceitos e fundamentos da matéria até segurança digital, patrimônio digital, proteção de crianças e adolescentes nesse ambiente, regulamentação da inteligência artificial, disposições sobre contratos digitais, modalidades de assinatura e atos notariais eletrônicos.

Conclusão

Conforme mencionado na introdução, o anteprojeto representa um marco para a sociedade e o ambiente jurídico nacional, ajustando-se às novas realidades sociais e garantindo uma legislação mais clara e abrangente.

Desde o recebimento do anteprojeto pelo Presidente Pacheco, em abril deste ano, aguarda-se o despacho da mesa do Senado para o protocolo da matéria e a consequente definição dos trâmites legislativos.

Assim que protocolada, a matéria tramitará em ambas as Casas Legislativas, iniciando pelo Senado Federal e seguindo os ritos regimentais para a apreciação de um projeto de Código.

Espera-se que a análise da matéria seja profunda e conte com ampla participação social, permitindo um debate extenso, garantindo a correção de redações controversas e padronizando o entendimento geral, considerando a jurisprudência e a doutrina vigentes. Para isso, é necessária cautela e tempo, sem que haja uma apreciação apressada do conteúdo.

O Código Civil é um balizador social e deve ser atualizado, como proposto pela Comissão de Juristas, mas o Parlamento deverá garantir que este processo ocorra de forma coesa e detalhada.

Por Ana Carolina Georges e Castro, sócia do MJAB.

Novo Código Civil

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